quinta-feira, 15 de novembro de 2018

NÓS PORTUGUESES, ENTRE UM PAR DE ESTALOS E A SAUDADE



Tantas palavras para bofetada e uma só para saudade?! Para quem é adepto de perguntar, mesmo sabendo que é mais fácil fazê-lo do que responder (ainda que a boa resposta dependa também da boa pergunta), impõe-se: “Porquê?” Porquê sintetizar tudo o que a saudade exprime numa só palavra saudade? Porquê, se até para uma simples bofetada recorremos ao processo analítico e criamos mais de uma dezena de expressões? Quando falamos de saudade, não nos referimos a um acto ou objecto, mas a um sentimento; que revelará dos portugueses a particularidade de tal unificação?

Numa rede social, o meu amigo José Miguel Braga colocou um daqueles comentários aparentemente inocentes, mas provocadores:        “De entre o imenso rol de variações da chapada, temos a muito musical lambada, a insuspeita lostra, a melíflua rabanada e, é claro, a insinuosa ‘puta’. Levas uma puta!

Esta observação originou uma série de respostas com outros tantos nomes alternativos para o mesmo ato de esbofetear alguém. Entre vários, surgiram os seguintes: “Banano”, “tabefe”,”estalo”, “estalada”, “açoite”, “cachaço”, “calduço”, “solha”, “lostra”, “lapada”, “bofardo”, “sapatada”, “lamparina”, “laura”, “galheta”, “bolachada”, "palmada". Falou-se de alguns que desconhecia, como “calduço” ou “muquenco” e até um outro que desconfio pertencer ao domínio do idioleto, neste caso “catracasla”.

Mudando aparentemente de assunto, acabo de ler um interessante ensaio de Onésimo Teotónio de Almeida sobre a “saudade” e a pretensa tendência dos portugueses para padecermos deste sentimento. Com um espírito marcadamente empirista, a que não será alheia a forte influência anglo-saxónica, contesta a visão dos “saudosistas” da “Renascença Portuguesa”, que criaram a chamada “Filosofia portuguesa”: Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e António Quadros.

Na sua argumentação, começa por contrariar ser a língua a fazer um povo, defendendo, ao contrário, ser um povo a fazer a língua. Chegado aqui, nega a visão saudosista de que os portugueses se possam formar a partir da sua língua, desferindo assim um golpe no arreigo de Pascoaes e Quadros pela palavra “saudade”, na qual viram uma (ou a) nascente da identidade nacional.

Uma primeira observação seria que, se a língua não é causa mas consequência, é então um meio para chegar à causa, tal qual um sonho não é o inconsciente, mas nos permite chegar até ele.

Afirma também Onésimo Teotónio de Almeida:  
O conteúdo salvável da intraduzibilidade de palavras, como saudade (…), jaz no facto de ser uma das características do comportamento cultural de cada um desses povos a incidência com relativa frequência desse tipo de sentimento, o que levou à criação dum vocábulo que o denotasse” (167).
Parece então poder inferir-se terem os portugueses uma maior tendência para o saudosismo do que outros povos. Tanto mais, prossegue, “É dado assente da sociolinguística e da psicolinguística que uma realidade frequentemente enfrentada, vivida ou sentida exige um nome por facilidade de referência”. Poderíamos então concluir que este sentimento foi/é particularmente forte no caso dos portugueses.

A resposta de Onésimo é, porém, uma aporia: “Deparei, por acaso, no American English Dictionary com pelo menos duas palavras identificadas como de origem portuguesa e aceites como intraduzíveis pelo inglês: auto-de-fé e cuspidor”. Segue-se a óbvia conclusão: “Estou convencido de que qualquer um de nós rejeitaria a afirmação de que essas realidades fazem parte da e muito menos constituem a alma nacional portuguesa” (168).

Pelo menos uma destas palavras, auto-de-fé, parece confirmar os dois postulados que formulou: Primeiro, é a prática dum povo a formar a sua língua e não o contrário; segundo, ser a incidência particular dum acto (ou sentimento) a levar também esse povo a criar palavras dificilmente revertíveis a outros idiomas.

Partido daqui, observemos que auto-de-fé e cuspidor são sujeitos muito concretos, não correspondendo a sentimentos, enquanto saudade, sim, é um sentimento. Dentro desta lógica, concluiríamos terem os portugueses procurado a palavra para definir um sentimento por eles sentido com particular incidência.

Concluiríamos e fecharíamos se os argumentos se ficassem por aqui, mas não. Pergunta-se o autor se, pelo facto dos árabes terem cinco mil palavras referentes a “camelo”, isso quererá dizer que a camelidade “constitui essência ôntica da língua árabe”. Ou se, tendo os esquimós 10 para neve não seria então de considerar“’a nebelidade’ como constitutivo espiritual dos esquimós”. Num outro exemplo, mais próximo de nós, lembra  as mais de cem palavras para cachaça no Brasil, mas “não lembrará a ninguém apontar a ‘cachacidade’ como a alma nacional brasileira” (169).

Curiosamente, depois inverte o argumento:
O que parece ocorrer na cultura portuguesa relativamente ao uso da palavra saudade é um abuso da sua aplicação, que acaba por levar a um alargamento excessivo da sua extensão ou significado. Quando uma realidade complexa é analisada, descobrem-se nela elementos constitutivos que recebem um nome (…). Foi assim que os esquimós descobriram vários tipos de neve ao lidarem com tanta dela (…). O contacto com um real que se vai diferenciando leva à sua subdivisão e consequente multiplicação de palavras para nomear todos os seus componentes ou variações identificadas (169-170). 
Portanto, ter-se-ia passado o inverso com a palavra saudade: em vez dum processo analítico desmultiplicador desse sentimento geral em diversos estados, chegaríamos a um processo sintético, unificador de diversos estados numa só palavra: 
Mesmo quando essas experiências foram analisadas em pormenor e os autores falaram de sentimentos que a cultura universal de há muito baptizou com nomes próprios, esses autores persistiram em denominar saudade todo esse leque de experiências e emoções humanas (170).
Obviamente, o facto de não terem uma só palavra unificadora dos diversos estados de espírito identificados como saudade, não quer dizer que os outros povos não tenham esse(s) sentimento(s). Por outro lado, se Pascoaes e Quadros consideraram que é a partir da “mónada” língua que se forma o caracter daquele que a usa e não o contrário, será porque a Antropologia e a Linguística não tinham então os avanços de hoje. Contudo, daqui, ou apenas daqui, não podemos partir para a negação da saudade como formadora do carater português: Primeiro, porque, como aponta Onésimo, a língua nasce a partir dum povo; segundo porque, não revelando que apenas os portugueses a sintam, saudade significa que só os portugueses unificaram esses sentimentos num só.

Voltamos ao início: tantas palavras para bofetada e uma só para saudade?! Para quem é adepto de perguntar, mesmo sabendo ser mais fácil fazê-lo do que responder (mesmo dependendo da boa pergunta a boa resposta), impõe-se: “Porquê?” Porquê sintetizar tudo o que a saudade exprime numa só palavra saudade? Porquê, se até para uma simples bofetada recorremos ao processo analítico e criamos mais de uma dezena de expressões? Quando falamos de saudade, não nos referimos a um acto ou objeto, mas a um sentimento; que revelará dos portugueses a particularidade de tal unificação? Não sei, mas algo foi e algo somos.



Luís Novais


ALMEIDA, Onésimo Teotónio. Filosofia da Saudade, filosofia portuguesa: alguns equívocos. In: Id. A Obsessão da Portugalidade (1ª Edição, 2ª reimpressão). Lisboa: Quetzal, 2018, pp 154-193.


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

EU QUERIA

(em limpezas de disco descobri este que aqui veio parar. é de 23 de novembro de 2009)

Eu queria ter talento.
Quereria ser Pessoa.
D'una pessoa,
meus muitos sacar

Que magia tamanha,
num iludido eu.
Três mais um bastariam,
à real ilusão.

Um dedicado filósofo sisudo,
sempr'a pensar no qu'é grande.
Em pedra Ser vislumbrar,
ou d'existir seu preceder.

Outr'aventureiro viajante,
escritor, poet'amante.
Deste mundo deslumbrado,
em letras vida sonhando.

Terceiro, marido pai zelador.
Tud'em toda vida dedicado,
sempr'a regar, arar e podar
procedido em si precedente.

O quarto inda restaria,
destes todos seu lar.
Anfiteatro montado,
em triplo contracenar.

Como eu queria ser Pessoa!
palco de filósofo, poeta e pai.
Em minha desunião,
unidade vislumbrar.

Eu queria ser Pessoa.
Queria!
D'una pessoa,
meus múltiplos sacar.


Luís Novais


terça-feira, 30 de outubro de 2018

COM DEFENSORES ASSIM, POBRE CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL!




Não podemos compreender a civilização ocidental sem a transcendência de Platão e, portanto, sem uma profunda crença na verdade (…).  Sem alegoria da caverna, podemos ser tudo menos o que somos.

Numa reportagem da SIC, afirmava-se o seguinte sobre a eleição de Jair Bolsonaro:

Defensor da ditadura militar e da tortura, o novo presidente do Brasil assumiu durante toda a campanha um discurso de violência e ódio. Jair Bolsonaro está há 27 anos na política, mas conseguiu fazer passar a ideia de que não faz parte do sistema.

Não costumo contradizer os geralmente nada argumentados comentários que as turbas colocam nas redes sociais, mas desta vez não pude evitar: encontrei um grande amigo, que dizia ser tudo um “chorrilho de mentiras”. Tive de lhe perguntar ponto-por-ponto se cada uma daquelas referências era falsa... Que não, mas que eram antigas e Bolsonaro já se tinha demarcado e até pedido desculpas.

Devo sublinhar que esta resposta é um grande avanço. Normalmente, os adeptos deste adepto da ditadura costumam negar, fazendo juras pela falsidade e edição de todas as declarações mais comprometedoras do seu novo ídolo. Neste contexto, chega a ser positivo reconhecer uma veracidade, mesmo ressalvada por um pretenso pedido de desculpas que não encontrei em lugar algum, mas cuja possível existência não nego.

Esta resposta levou-me a dizer ao meu bom mas crente amigo, que não basta desdizer-se o já dito se, ainda há pouco, Bolsonaro evocou o sinistro torturador Ustra, em plena Câmara dos deputados. Obviamente, não estamos a falar de pensamentos longínquos e quaisquer desditos em cima da campanha, mais não são do que má recauchutagem para não levar a sério. Lá que o meu bom  amigo, não sendo jornalista, se deixe enganar, é uma coisa, que acuse uma equipa de jornalistas de proferirem um “chorrilho de mentiras” quando só dizem verdades, é outra muito diferente.

Por fim, aceitou que o importante é não ter sido isso que o povo percebeu e lá me calhou, em paciente pedagogia,  explicar-lhe qual é o papel dum jornalista. Tudo bem.

Esta atitude de acusação ao jornalismo quando diz verdades incómodas, foi algo em Portugal iniciado por Cavaco Silva e, internacionalmente, teve vários adeptos, atingindo o apogeu com Donald Trump, esse grande difusor da mesma ideia com que o meu amigo argumentava: “Verdade é o que o povo percebe como verdade”.

O tema está bem estudado, até já tem o seu lugar na datação histórica como pós-verdade, que não é, afinal, mais do que a uma pós-modernidade, já embrionária no século XIX, bastando ler alguma da imprensa da época, ou as criticas mordazes dum Balzac ou dum Eça. No início do século XX, já Goebbels, dum lado, ou Walter Lippmann, do outro, tinham percebido como era isso de transformar a mentira muito repetida em verdade muito assimilada.

Aqui não me interessa entrar nessa teorização, que aliás Chomsky faz com o rigor dos mestres. Quero apenas sublinhar uma constatação: normalmente, esses mesmos que acusam a imprensa séria de produzir falsas notícias (ou, mais portuguesmente, “chorrilhos de mentiras), fazem-se também grandes defensores da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, proferem fatahs contra quem quer que ainda procure lançar bóias a um rigor, cada vez mais afundado neste pântano de mentiras, rapidamente transformadas em verdades apenas porque “é assim que o povo as vê”.

Não podemos compreender a civilização ocidental sem a transcendência de Platão e, portanto, sem uma profunda crença na verdade.  Tenho que nascemos civilizacionalmente em “Fedón”, onde Sócrates está feliz porque vai regressar a esse mundo, o das ideias, o da verdade. Sem alegoria da caverna, podemos ser tudo menos o que somos.

E lá tive de dizer ao meu amigo que ele, tão acusador de lhe andarem a destruir o seu rico Ocidente, não faz mais do que lhe espetar mais um prego no caixão, quando acusa de “chorrilho de mentiras”, o que termina por reconhecer apenas como algo diferente daquilo que “o povo entendeu”. Com defensores assim, pobre civilização ocidental!



Luís Novais



terça-feira, 23 de outubro de 2018

ANTES QUE SEJA TARDE!


















Sou marginal!
Mais e mais:
marginal.
Unem-se os que eram,
agora sou eu:
marginal!
E aqui onde estou
menos é mais.
Regressam,
eufóricos
Elegem-se,
eleitos
E eu?
Sentado,
calado,
Incrédulo.
parado. 
“Marginal, marginal” me chamam,
eles:
os marginais,
que são corvos.
Comem carniça.
Marcham e gritam.
Gritam,
marcham.
Desgarrados pedem:
sangue nosso,
nosso:
agora tidos
no que eles são.
“Marginais” somos:
pela Paz, guerra não;
Direitos, liberdade sim;
Justiça, tortura não.

Acabou?!

Não, por favor, não!
é a Hora
nossa Hora nossa.
Da fronteira que nos une,
clara fronteira clara.
Chama-nos.
"Real, real":
“À fronteira todos, todos à fronteira”.
Mas todos.
É urgente!
é a Hora,
É Agora
Antes que tarde:
é a Hora
É Agora, é agora!


Luís Novais

Foto: Alexas

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

O QUE SE PASSA NO BRASIL?



Julgo que vale sair deste registo e tentar perceber o fenómeno do ponto de vista do seu significado social e das suas causas profundas. E é desse ponto de vista que não creio podermos entender a situação no Brasil de hoje, sem recuarmos ao aparecimento dos nacionalismos latino–americanos, que despontam depois da primeira guerra mundial e, sobretudo, da grande depressão de 1929.

Em Portugal os últimos tempos têm sido férteis em debates, muitas vezes estéreis, sobre as eleições no Brasil. Enquanto adeptos do autoritarismo de direita começam a sair do armário onde socialmente se tinham metido em 1974, outros, à esquerda, limitam-se a perguntar “como é possível?” e descarregam a desorientação em palavras de ordem, ou até num insulto tão fácil quão inócuo.

As conversas sobre o tema terminam invariavelmente na pura picardia e a racionalidade perde-se completamente, num remoinho que as redes sociais intensificam até aos limites do absurdo.

Julgo que vale sair deste registo e tentar perceber o fenómeno do ponto de vista do seu significado social e das suas causas profundas. E é desse ponto de vista que não creio podermos entender a situação no Brasil de hoje, sem recuarmos ao aparecimento dos nacionalismos latino–americanos, que despontam depois da primeira guerra mundial e, sobretudo, da grande depressão de 1929.

Por esse então, a mudança da esfera de influência inglesa para a norte-americana estava a ser traumática para o continente, particularmente para o Brasil. Eram países dedicados à exportação de bens primários, até aí acostumados ao comércio bidirecional com uma Europa que em troca lhes vendia os bens industrias que não produziam. O avanço tecnológico dos Estados Unidos mudou a direcção das importações tecnológicas sem mudar a das exportações, que o gigante do norte praticava um paradoxal proteccionismo do seu sector primário.

Mas a procura de bens primários no velho continente também diminuiu e essa quebra debilitou os grandes fazendeiros, abrindo caminho às ambições hegemónicas da burguesia urbana industrial, até aí relegada para segundo plano. Referindo-se ao caso peruano, o sociólogo Anibal Quijano Obregon (1971) concluiu que esta situação gerou uma quebra do consenso hegemónico entre as duas burguesias, colocando-as em rota de colisão.

A partir daí, inicia-se um processo de substituição de importações, alcançado com intensas políticas industrializadoras. Esta estratégia ganhará ainda mais ímpeto com a expansão da teoria da dependência, de François Perroux e, sobretudo, com a dos “centros assimétricos”, depois que Raúl Prebish entrou a dirigir a Comissão Económica para a América Latina da ONU, em 1949. Segundo estas teorias, o atraso do subcontinente devia-se a que exportava apenas matérias-primas baratas e precisava de importar produtos industrializados caros.

Estas teses assentaram como luva numa burguesia urbana e industrial que desde a década de vinte tinha atitudes cada vez mais nacionalistas, reclamando uma economia protegida que permitisse um desenvolvimento industrial endógeno. E não é por acaso que, num aparente paradoxo, os Estados Unidos apoiaram entusiasticamente este modelo: Nessa época já não estavam interessados na exportação de bens de consumo mas de tecnologias, essas mesmas sem as quais tão desejada industrialização não seria possível.

O resultado foi óbvio: deixaram de se importar bens industriais de baixo preço, passaram a importar-se tecnologias de alto custo. Ou seja, em lugar de diminuir, aumentou-se a dependência, tanto pela importação de equipamentos, como dos capitais com que se compravam.

Foi assim que se criaram as novas indústrias brasileiras: pouco experientes, pouco competitivas no mercado internacional e podendo subsistir apenas com uma grande protecção de mercado.

Ao mesmo tempo que a industrialização avançava, aumentava também a população urbana, tanto a proletarizada, como a pequena classe média administrativa e funcionalizada. A consciência que estes grupos ganhavam em ambiente urbano e industrial tornava-os cada vez mais reivindicativos. Por outro lado, a quebra da aliança entre fazendeiros e industriais debilitou a união entre burguesias, dificultando o controlo dos restantes grupos sociais.

Esta fragilidade era insustentável: O endividamento externo e o deficit na balança comercial implicavam que alguém pagasse a fatura. Era preciso que o Estado resolvesse o problema e só um Estado forte poderia fazê-lo.

É neste contexto que devemos entender o golpe de Estado de 1964 no Brasil, o de 1973 no Chile e, até, o de 1968 no Peru que, apesar da aparência socializante, seguiu estritamente os interesses da elite empresarial urbana, resolvendo-lhe os conflitos com os haciendados e com as massas urbanas.

O chamado “milagre económico” da ditadura militar brasileira foi afinal um pesadelo, conseguido à custa duma brutal dívida externa, mas sobretudo dum terrível aumento da desigualdade social, directamente ligado às diferenças raciais. A disparidade na distribuição da riqueza, um problema já de si crónico, alcançou dimensão insuportável em 1985, quando a rua obrigou os ditadores a abandonar o poder.

Depois dum período de estabilização macroeconómica, as políticas sociais começaram a despontar na presidência de Fernando Henrique Cardoso, mas é com Lula que são alçadas a prioridade do Estado. Ao contrário do que afirmam muitos dogmatizados, os governos do ex-sindicalista não tiveram nada de comunista, mas foram puramente social-democratas: O Estado confiou no sector privado para gerar riqueza e em si mesmo para redistribuir socialmente, atacando particularmente as situações de pobreza e pobreza extrema. E os resultados foram claros: Em 2001 os extremamente pobres eram 17,5% da população, em 2008 8,7%; uma diferença de quase 9 pontos em sete anos (fonte).

É difícil perceber como se conseguiu o consenso social para obter tais resultados, sabendo que o grande e poderoso empresariado brasileiro estava viciado na protecção do mercado, geradora dos grandes ganhos que eram pagos pelos estratos mais baixos da população.

Lula conseguiu a quadratura do círculo dum consenso social, pondo-se ao lado dos empresários, naquele que foi o maior processo de internacionalização da economia industrial alguma vez fomentada pelo Estado brasileiro. Para isso abriu mercados em África e na América Latina, acentuou a diplomacia económica e criou novos espaços económicos, num trabalho de que a criação da UNASUR foi o melhor exemplo. Last but not least, disponibilizou-lhes capitais fáceis e abundantes para o processo de internacionalização. Lembro-me, por exemplo, do gestor duma construtora na América latina se ter queixado de que não conseguia parcerias publico-privado nesse país, porque as empresas brasileiras do sector eram inundadas de capitais baratos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento.

O problema surgiu quando esta classe usou no estrangeiro os mesmos métodos que estava acostumada a usar Brasil, onde sempre conseguira manter os privilégios económicos à custa duma grande promiscuidade com os políticos, ou seja, da corrupção. A classe política latino-americana caiu facilmente na tentação, incluindo o PT, que não teve a força necessária para cortar com as mesmas práticas que outros tiveram no passado e esquecendo-se de que, sendo apenas um enteado do sistema económico, jamais lhe perdoariam o deslize.

Este ponto fraco foi fatal, porque a estratégia expansionista brasileira estava em conflito com a de outras potências, muito mais fortes e também elas ávidas dos mesmos mercados. Fosse por efeito da sua acção, fosse pela maior transparência em que vivemos, o escândalo era de tal dimensão que tinha de rebentar e rebentou. Foi tão grande que as empresas brasileiras tardarão mais de duas décadas a recuperar confiança internacional, e isto no improvável caso de se esforçarem muito.

Hoje, a classe empresarial brasileira sabe ter novamente de se confinar às fronteiras do país e esse confinamento implica uma fatura a pagar pelos pobres do costume. Por outro lado, há uma classe média alta é até média-média que era beneficiada indirecta, recebendo algumas sobras do corrupto festim, sem que estivesse directamente implicada e preferindo até fechar os olhos, sabendo sem saber. Os primeiros percebem que não se manterão nas novas-velhas condições sem que o Brasil regresse aos mesmos números de pobreza que o envergonhavam; para impô-los, precisam dum Estado forte, autoritário, socialmente insensível, capaz de disparar primeiro e perguntar depois. Quanto aos segundos, que são os manifestamente descontentes, um número significativo do seu escalão mais alto saiu do país, engrossando a massa de brasileiros endinheirados no estrangeiro, os mesmos que, por exemplo em Portugal, votaram maioritariamente em Bolsonaro. Na base estão as massas desprotegidas, em desespero, que sentem e ainda mais sentirão na carne viva aquilo que para os outros é apenas o regresso a um passado privilegiado, ainda que menos sonhador.


Luís Novais




terça-feira, 9 de outubro de 2018

HADDAD OU BOLSONARO?




Dos bons princípios podem surgir más práticas, nunca tanto como aquelas que surgem dos que são maus; um péssimo ponto de partida leva sempre a pior ponto de chegada.

Como é próprio de todos os radicais, Bolsonaro extremou as posições e dificultou imenso as análises objectivas. A campanha no Brasil ficou reduzida a uma gritaria nas redes sociais e os campos estão bem delimitados: Dum lado os defensores do candidato protofascista, homofóbico, misógino e defensor da privatização do exercício legítimo da violência, o que é um dos maiores recuos de sempre nos conceitos de Estado de Direito Democrático. Do outro lado o candidato que, para o bem e para o mal, é herdeiro da passagem do PT e de Lula pelo poder.

Há uma corrente forte que defende o voto num ou no outro, não a favor de nenhum deles, mas contra cada um. No que me toca, não tenho qualquer dúvida: Votaria no candidato Haddad, por várias razões que superam a minha clara recusa de Bolsonaro.

Em primeiro lugar, o PT é um partido com bons valores, que têm origem no humanismo greco-cristão renovado no iluminismo, os mesmos que levaram ao aparecimento das doutrinas sociais, incluindo a da igreja e a social-democracia.

Pertenço ao grupo para o qual a criminalidade violenta se supera com igualdade de oportunidades e acredito que estas não surgem sem programas sociais, educativos e de discriminação positiva. Nesse domínio, Lula comportou-se como um social-democrata europeu, bastando ver como diminuiu o número de pobres, que nos seus governos passaram de 24% para 13% da população e, com Dilma Roussef, de 13% a 7,4% em 2014. Isto segundo o conceito internacional, porque segundo o nacional a descida foi ainda mais drástica (Fonte). Um resultado meritório, que também marca pontos para outro grande presidente,  Fernando Henrique Cardoso.

Um número tão elevado de pobres como aquele que Lula encontrou é insustentável e, necessariamente, gerador de criminalidade e violência. Se não é mais possível ter a Casa Grande ao lado da Senzala, porque esta dicotomia mantinha-se com um estrito controlo violento e contrário ao mais elementar dos Direitos Humanos, hoje já não é igualmente possível ter a favela ao lado da riqueza opulenta.

Portanto, o PT tem princípios humanistas e uma perspectiva social do exercício do poder, com que concordo convictamente. Por outro lado, não conseguiu extirpar a corrupção endémica, que é uma constante da história (não só da brasileira) e aí falhou. Falhou mas tomou medidas, tanto que terminou sendo vítima da sua própria legislação, bastando lembrar que, se não fosse uma lei de Lula, Lula seria candidato e, provavelmente, ganharia. Paradoxalmente, nunca ninguém fez tanto contra a corrupção como aqueles que agora são acusados de a praticar, como se antes vivêssemos num paraíso de políticos e empresários impolutos. E afinal, se tudo fosse apenas uma questão de honestidade, ainda teríamos na presidência a mesma Dilma Roussef que nem senadora foi eleita.

Do outro lado está uma opção que quer mudar a sociedade com base na brutalidade, numa tendência que tem origem real nos momentos mais negros da história do século XX: essa ideia de que a violência se combate com uma violência muito maior e, até, com uma privatização do seu exercício, como tão bem souberam fazer Hitler ou Mussolini. A esta visão, juntam-se o racismo e ideias totalitárias contra os direitos de opção e das minorias, cujos ecos também nos vêm desses tempos.

Há que dizê-lo com todas as palavras: Bolsonaro é um puro fascista, palavra tão desvalorizada pelos excessos de adjectivação que a esquerda foi usando numa inconsciente facilidade, que agora até nos custa admitir. Mas não, neste caso estamos perante um caso real, votar Bolsonaro é votar no regresso do fascismo, com todos os horrores que lhe conhecemos.

É por isso que, se fosse brasileiro, não teria dúvidas, votaria Haddad, não só contra Bolsonaro, mas também porque acredito que Haddad é herdeiro de bons valores. Sobretudo, há algo que para mim é um axioma: Dos bons princípios podem surgir más práticas, mas nunca tanto como aquelas que nascem dos que são maus; um péssimo ponto de partida leva sempre a pior ponto de chegada.



Luís Novais

segunda-feira, 4 de junho de 2018

YVONNE


Por que não escrevo,
a ti, de ti?
Do que te sinto,
do que te penso.
E escrevo, escrevo tanto.
Por que te não escrevo,
a ti, de ti?
Se  tanto,
o que de ti sou.
Sentido-me que te sinto,
quando me dás:
tu, eu, Ser.
Porquê? Por que te não escrevo?

Escrever é (des)sofrer!
Apenas parte do que sou.
Não te escrevo,
não posso e não escrevo.
Não me dás o que escreva,
dás-me o que não escrevo:
Essa parte de mim.

Escrever é buscar,
parte do que fui.
Não precisa de letras,
essa parte que partiu
e encontrando-te chegou.


Luís Novais

sábado, 14 de abril de 2018

TRUMP, A SÍRA E AS AMÉRICAS NUM MOLHO DE BRÓCULOS


Não surpreende, trata-se da fiel representação do país que Trump tem: O melhor do mundo a destruir e matar, mas dos piores a cuidar a saúde dos seus próprios cidadãos, esta sim uma real e também química guerra civil.   

Enquanto a Síria era bombardeada por Donald Trump, decorria em Lima a VIII Cimeira das Américas. A participação do presidente norte-americano estava confirmada, tanto que, em fevereiro, mandou ao Peru o secretário de estado Rex Tillerson a reunir-se com o então presidente Pedro Pablo Kucksinsky (PPK), para transmitir ordens expressas sobre esta cimeira.

Só quem acredite em coincidências e seja completamente surdo ao que dizem as fontes peruanas ligadas a este processo, pode considerar ter sido uma coincidência que, apenas 11 dias depois, PPK convocasse os ministros dos Negócios Estrangeiros de 13 países do intitulado “Grupo de Lima” que, entre outros, inclui Argentina, o Brasil de Temer, Canadá, Chile, Paraguay Santa Lucia e… esse modelo de Democracia que se chama Honduras. Na agenda, um ponto único: Retirar a Nicolás Maduro o convite para que participe na Cimeira das Américas.

Quem acompanhou o evento sabe da polémica nos bastidores e que PPK não conseguiu o que pretendia, ficando no final com uma mera declaração de respeito pela sua decisão (ver aqui). Apesar disso, foi prémio de consolação suficiente para que retirasse o convite já antes enviado ao ditador venezuelano. Num entusiasmo trumpiano, o anúncio fez-se pelo Twiter.

A cronologia mostra descaradamente aquilo que as fontes do palácio de governo peruano afirmam: Donald Trump colocou como condição para a sua vinda que Nicolás Maduro não estivesse presente. Vejamos: Primeiro, o Peru fez o convite ao venezuelano, depois recebeu o secretário de estado Rex Tillerson para falar sobre a cimeira, em seguida convoca para Lima os ministros dos negócios estrangeiros de 13 países americanos, por fim o convite a Maduro é dado por não dado. Só depois deste processo, no dia 9 de março, o presidente norte-americano confirmaria a sua participação.

A ironia disto tudo, são as voltas que a história dá. Maduro, que foi convidado, depois desconvidado e que afirmou continuadamente que viria e viria, não veio. Pedro Pablo Kucksinsky, que convidou, depois desconvidou  e que, claro, estaria e estaria, tampouco esteve, forçado entretanto a renunciar para não ser demitido no parlamento: Consultoras suas com sede nos EUA prestavam serviços milionários à construtora Odebrecht, enquanto era primeiro-ministro e adjudicava milhares de milhões à mesma empresa brasileira. Por último, também Trump, que confirmou e confirmou, afinal falhou, empenhado que se empenhou no bombardeamento da Síria.

Ironias à parte, este caso mostra bem de que lado da história está o presidente dos EUA. A cimeira das Américas foi criada em 1994 para fomentar o diálogo entre os países do grande continente. Apesar de todas as deficiências inerentes a este tipo de reunião, trata-se dum espaço de confronto pacífico, de diálogo e de procura de consensos. Trump, essa egocêntrica Super Star, não quis partilhar o palco com Nicolás Maduro, um igualmente egocêntrico mas artista de rua. Por fim, a “grande estrela” não quis vir: Ficar e matar noutras bandas, foi um apelo irresistível frente à alternativa de vir e dialogar no seu continente.

Não surpreende, trata-se da fiel representação do país que Trump tem: O melhor do mundo a destruir e matar, mas dos piores a cuidar a saúde aos seus próprios cidadãos, esta sim uma real e também química guerra civil.   

Um aparte final para dizer que, quanto às causas diretas do bombardeamento, não me convencem. Enganaram-me uma vez, e bem enganado, no filme Iraque-2003, quando acreditei e apoiei. Depois disso, jurei a mim mesmo que só com muita prova… E refiro-me apenas às causas diretas, porque aos verdadeiros motivos já os dou de barato: Ali não há nada de humanitário, basta ver a geopolítica e os ouvidos de mercador aos crimes cometidos pelo vizinho do lado.



Luís Novais

quinta-feira, 5 de abril de 2018

DESMISTIFICANDO O 25 DE ABRIL. PRIMEIRA PARTE: O PCP E A AMEAÇA SOVIÉTICA



O alertas dramáticos que Mário Soares começou a lançar nos governos europeus, de que havia orientações de Moscovo e Portugal estava para cair na esfera soviética, não serviram para mais do que cortar um dos elos do nó górdio em que o seu projecto de poder estava metido.

Temos tendência para analisar os acontecimentos com base num binómio intuitivo entre provável e improvável. É isso que nos leva a refletir com base em causalidades óbvias e facilmente identificáveis. Políticos e comunicadores sabem-no perfeitamente, e é por esse motivo que tendem a transformar a realidade-real numa realidade-comunicada. Para isso, a mensagem tem de ser o mais simples e óbvia possível. Geralmente conseguem, impondo mitos que duram gerações.

Quando o senso comum tenta explicar o Período Revolucionário português, que vai de abril de 1974 a novembro de 1975, a explicação óbvia é que tínhamos um Partido Comunista apoiado por Moscovo, que queria sovietizar o país e seguia fielmente instruções vindas da URSS.

Fora dos meios académicos, raramente se refere que, em 1974, estávamos em pleno nesse período a que se chamou a détente, que poderíamos traduzir como “desanuviamento”, um processo de aproximação entre leste e ocidente que terminou na assinatura dos acordos de Helsínquia em 1975. Alguns historiadores falam mesmo no fim da I Guerra fria, situando o início duma segunda em 1979, com a invasão do Afeganistão e a chegada da era Reagen.

Este processo de desanuviamento começa por 1968 e foi impulsionado por interesses conjuntos da União Soviética, da Alemanha Federal e dos Estados Unidos, estes últimos movidos pela dupla Kissinger-Nixon, para mim e fora de qualquer dúvida, o melhor presidente dos Estados Unidos no pós-guerra… eu sei, eu sei, presos às imagens criadas, o sensos comuns não pensam assim.

Só para dar alguns exemplos: Nixon abriu as relações diplomáticas com a China Popular, assinou os acordos SALT II de desarmamento, terminou a presença americana no atoleiro vietnamita, que foi uma herança sem sentido da administração Johnson, conseguiu estabelecer com Moscovo uma cooperação científica nos campos da medicina e da conquista do espaço etc etc. Presos a preconceitos e a imagens que nos formularam, preferimos achar que o herói foi um Presidente claramente impreparado, que entregou Cuba de mão beijada à URSS por andar a brincar aos cow boys na Baía dos Porcos (1961), ou que dizia frases muito estilosas mas que não resolveram nada, tal como essa cheia de glamour:  Ich Been ein Berliner” (1963).

Se é verdade que em 1974 a URSS estava interessada em Angola, não tinha interesse estratégico em Portugal, como bem o demonstra o discurso neutral e orientado à conciliação com que Cunhal aterrou em Lisboa no dia 30 de abril de 1974, depois de 14 anos de exílio em Moscovo.

Quem realmente deu força ao PCP para uma progressiva radicalização, foi a República Democrática da Alemanha (RDA), que se sentia ameaçada pela aproximação entre Bona e Moscovo, iniciada desde que Willy Brandt chegou ao poder. Um Portugal sovietizado acicataria receios no eleitorado federal alemão e por certo seria politicamente explorado pela direita, prejudicando a Ostpolitik de Brandt, que tinha um objectivo claro: a reunificação, ou seja, o fim da RDA.

Os alertas dramáticos que Mário Soares começou a lançar nos governos europeus, de que havia orientações de Moscovo e Portugal estava para cair na esfera soviética, não serviram para mais do que cortar um dos elos do nó górdio em que o seu projecto de poder estava metido: Um PCP com implantação, com experiência política e interessado em cooperar, era uma ameaça para um PS ainda imberbe. Soares sabia bem que os apoios aos comunistas não vinham de Moscovo, mas de Berlim Oriental, e sabia bem porquê. Sabia ele e sabia Willy Brandt, que alinhou no discurso porque a ameaça global que poderia mover o mundo ocidental era a soviética, não a da Alemanha de leste.

A outra frente desse nó górdio era a direita militar, representada por Spínola, com um modelo de democracia cesarista, que não era conciliável com o civilismo soarista. Spínola caiu porque nenhum partido o apoiou e nenhum partido o apoiou porque o general tinha ligações à caserna, mas faltava-lhe a confiança da sociedade civil partidarizada, que tinha outro projecto de poder.

Foi por isso que Soares teve de jogar em duas frentes, a primeira implicava impulsar a esquerda militar e política, para aniquilar Spínola. A segunda, e uma vez acabada a ameaça spinolista, aniquilar o PCP e a esquerda militar. É também por isso que os ataques ao PCP se intensificam a partir do 11 de Março, quando o general ficou fora de jogo, e que só então se dramatizou ao limite, usando o caso “Republica” para acusar o PCP de querer dominar a imprensa. Num pico de confronto, Soares abandonou o governo, fazendo-o cair e obrigando à constituição do V Provisório, sem apoio de qualquer partido, exceto do PCP, ainda assim um apoio muito tímido.

A União Soviética tinha razões estruturais para que Portugal não valesse um recomeço da conflitualidade com o ocidente: Depois dos eufóricos anos 50, a sua economia vinha desacelerando-se progressivamente e todos os planos quinquenais tiveram um crescimento inferior ao anterior. Além disso, segundo um relatório da CIA já desclassificado, o atraso tecnológico soviético era de 4 anos nas máquinas assistidas por computador, 7 a 8 nas mainframes e 4 a 6 em microcomputadores. Acresce que, em toda a década de sessenta, o país tinha sido exportador de grãos e carne, mas na seguinte tornou-se o maior importador mundial. Em 1985 o PIB da URSS era apenas igual ao dos EUA 20 anos antes (CIA, 1985).

Moscovo precisava duma estratégia e tinha-a: Apostar tudo por tudo na exportação de petróleo, usando para isso tecnologia adquirida no ocidente (MAZAT, 2013).

Mas esta dupla necessidade, importar cada vez mais tecnologia ocidental e receber cada vez mais petrodólares, dependia dum desanuviamento da relação geopolítica. E assim percebemos que a política de détente era essencial para o crescimento económico soviético, aliás, para a sobrevivência do próprio país e do seu império, como ficou claro com a extinção da URSS em 1991, na sequência do relançamento da guerra fria em 1979, com o consequente falhanço da estratégia.
É por isso que, exercida alguma pressão ocidental sobre Brejnev em Julho-Agosto de 1975, este não esperou muito para falar com Honecker, o líder leste alemão, mandando-lhe que acabasse com todo o apoio que estava a dar aos comunistas portugueses. O aviso foi tão explicito, que terá dito não estar disposto a prejudicar a política de aproximação ao ocidente, “por uma mão cheia de comunistas portugueses ansiosos” (WAGNER, 2006). A partir de aí, Berlim Leste deixa de apoiar o PCP e é, precisamente, também a partir daí, que o discurso de Cunhal, que se vinha radicalizando desde dezembro de 1974, volta a moderar-se, até terminar no célebre comício do campo pequeno, em dezembro de 1975, já no rescaldo  do 25 de novembro, onde se alinhou claramente pelo modelo de democracia representativa ocidental e atacou os extremismos revolucionários.
Há vários factores que levam a opinião pública a acreditar numa ameaça soviética durante o período revolucionário, mas nenhum corresponde à verdade. Um, é o discurso que praticaram todos os partidos à direita e à esquerda do PCP, acusando-o de ser um "lacaio" de Moscovo. Outro, é uma certa mania das grandezas: Objetivamente, ter a URSS como inimiga, é um muito mais apetecível do que uma mera RDA. Trata-se dum mito, mas é um mito que fez mover a política… lá dizia Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”.

Num próximo artigo, abordarei a questão das nacionalizações que se seguiram ao 11 de março de 1975, outro tema que também está cheio de mitos.


Luís Novais


Bibliografia:
CIA
1985      “A Comparisation of the US and Soviet Economies: Evaluating the performance of the soviet system” (Desclassificado em 1999). (Consulta: 20.03.2018): https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0000497165.pdf
MAZAT, Numa
2013      “Uma Análise estrutural da Vulnerabilidade Externa Econômica e Geopolítica da Russia” (Tese de doutoramento). Rio de Janeiro: UFRJ.
WAGNER, Tilo
2006      “Portugal e a RDA durante a Revolução dos Cravos. In:  Relações Internacionais, n.º 11, Setembro, pp 79-89

quinta-feira, 29 de março de 2018

A PESTE BORBÓNICA


A monarquia borbónica está transformada numa peste borbónica, analogia a essa doença que, noutros tempos, vitimou muitos, sem distinção de quem era plebeu, aristocrata… ou rei.

Poucos sabem que o Peru, país onde vivo e amo como segunda pátria, esteve para ser uma monarquia. Chegado aqui desde a Argentina em 1820 e com o apoio do Chile, o “libertador” José de San Martin encontrou um território com tanta diversidade e tanto confronto potencial, que considerou só com um rei se poderia unificar. Foi a contradição entre esta perspectiva e a megalomania dum Simon Bolivar, interessado no nunca alcançado objectivo de ser o George Washington latino-americano, a impedir uma saída que, por esse tempo, se iniciava com êxito no Brasil.

Em 1822, o país já tinha declarado a independência há um ano e continuava sem forma de governo. Foi nessa altura que a “Sociedade Patriótica de Lima” organizou um debate em torno de duas opções: Monarquia ou República?

Destacaram-se as intervenções de Ignacio Moreno e Perez Tudela. O primeiro, partindo de Montesquieu, defendeu que o novel país tinha tantas diferenças, considerou que o povo estava tão mal preparado para o sistema republicano, que só uma monarquia seria viável. O segundo, Perez Tudela, baseando-se em Rousseau, defendeu que, apesar das diferenças, havia algo que unia todos os seres humanos e esse algo era o desejo de ser livre. Concluindo que a liberdade só se realiza planamente numa república, defendeu esta via.

Ambos partiam de ideias incorrectas para justificar um modelo. Nem a monarquia moderna se reveste do autoritarismo que Moreno nela encontrava e desejava, nem, por isso mesmo, é contrária à liberdade com que Moreno a via incompatível.

Mais do que governante, um rei moderno tem razão de ser quando consegue ser a “chave”, nome que se usa também para a peça central dum arco, aquela que sustem as pressões de ambos os lados, mantendo unidas todas as aduelas com que se ergue. Quando o monarca assume esse papel, tem uma razão de ser nos estados modernos, quando não o faz, torna-se na antítese da sua função e fica apenas como mais um factor de desunião.

Para isso, o rei tem muitas vezes de anular a sua liberdade de expressão e de acção. Mas ninguém é obrigado a sê-lo e, lá dizia a epifânia de Afonso IV pela pena de António Ferreira: “Ninguém é menos rei do que quem tem reino”.

Dependendo dos casos, um rei pode prestar grandes serviços à república, entendendo esta como um conjunto de cidadãos e, portanto, de seres humanos livres. Foi graças a um modelo monárquico, que o Brasil conseguiu ter a dimensão que tem, não se desmembrando como aconteceu à restante América latina. Foi também graças a isso, que a sociedade espanhola ultrapassou o trauma da guerra civil, conseguindo encontrar os pontos de união que lhe permitiram mudar de regime pacificamente, preferindo incorporar os problemas inerentes a uma transição consensual, do que aqueles que advêm duma revolução. Não é segredo para ninguém que Juan Carlos de Borbón foi um fiel discípulo de Franco, chegando mesmo a governar ditatorialmente durante a doença do caudillo em 1974. Mas até a esquerda espanhola, até as regiões mais independentistas, viram no rei uma alternativa ao caos. Foi por isso que a constituição de 1978 foi referendada e aprovada sem problemas de maior, método de aprovação que em Portugal já tinha sido usado em 1933.

O problema surge quando o rei não entende o drama de ser rei e quer sê-lo. Quando isso acontece, passa a ser parte do problema e entra no modelo de monarquia pré-contemporânea (ou ainda contemporânea em muitos países), essa que tinha outras justificações e outras legitimidades.

O caso catalão é um grande exemplo de que isso está a acontecer em Espanha. Em vez de ser o garante dessa liberdade de que Rousseau falava, perdendo-se como última instância, deixando de ser a tal “chave” que consegue suster as pressões de ambos os lados do arco, Filipe de Borbón é, hoje, um líder de facção que atua contra a vontade, ou maioritária ou de grande parte dum povo. É preciso não entender o processo histórico espanhol iniciado em 1975, para nos agarrarmos à letra duma constituição, que pode ter sentido num contexto, mas que hoje já não tem e relativamente à qual não se mostra a mínima abertura reformista.

O historiador Valério Arcary escreveu que as revoluções são “…uma das formas a que as sociedades contemporâneas recorreram para resolver tarefas históricas que permaneceram pendentes”. Segundo ele, uma revolução é uma estratégia de mudança excepcional e que raramente é usada porque, para que ocorra,  “…é preciso que todas as outras vias tenham sido antes bloqueadas e esgotadas”[1]

A perseguição desmedida que o reino de Espanha está a fazer aos independentistas; a incapacidade para negociar e para encontrar alternativas que, não necessariamente, teriam de passar pela independência, mas que teriam que aceitá-la como possível ponto de chegada; a paranóia de Rajoy suportada em Filipe; a total inflexibilidade contra o desejo (maioritário ou duma grande parte) dum povo… Tudo, mas absolutamente tudo, é prenúncio de tragédia, porque anuncia que todas as vias estão “bloqueadas e esgotadas”.

A monarquia borbónica está transformada numa peste borbónica, analogia a essa doença que, noutros tempos, vitimou muitos, sem distinção de quem era plebeu, aristocrata… ou rei.



Luís Novais




[1] Arcary, Valério, As Esquinas Perigosas da História. Situações Revolucionárias em Perspectiva Marxista, São Paulo, Xamã, 2004, p. 27.